Jefferson Botega / Agencia RBS
Fachada do estabelecimento na Rua Doutor TimóteoJefferson Botega / Agencia RBS

Uma mistura de pretensão, sorte e senso de oportunidade deu origem à primeira churrascaria do Brasil, que segue em atividade em Porto Alegre. Conversador, o italiano Antonio Aita, então motorneiro da Carris, gabava-se para quem podia do restaurante comandado pela esposa, Conchetta, na Rua Doutor Timóteo. Até que, em 1935, um assessor do então governador Flores da Cunha o procurou atrás de uma indicação. Queria alguém para preparar um churrasco para centenas de pessoas em comemoração aos cem anos da Revolução Farroupilha, no parque da Redenção

Em vez de recomendar um nome, Antonio dispôs-se a assumir a tarefa. Recrutou os quatro filhos e alguns amigos e comandou o churrasco ao ar livre, inaugurando um evento que se tornaria marca cultural da capital gaúcha.

– Hoje, se alguém perguntar qual é o prato de Porto Alegre, muita gente vai dizer que é churrasco. Mas não era assim naquela época. Era uma coisa pampeana. Flores da Cunha, que era um gauchão, da Fronteira, foi quem introduziu isso na cidade – conta o historiador Gunter Axt, autor do livro Tradição e Arte em Receber 1808-2018

O sucesso da ousada empreitada de Aita foi determinante para a mudança no perfil do restaurante da família, que incorporou os assados no cardápio. No imóvel térreo entre os bairros Floresta e Moinhos de Vento, nascia a primeira churrascaria do país.  

– Não sei como conseguiram (assar para tanta gente). Mas deu certo. Em seguida, meu avô colocou uma churrasqueira, uma chaminé e saiu vendendo carne – diz Jorge Aita, neto de Antonio e que hoje comanda o negócio.   

Carro-chefe do cardápio, os filés podem vir com molho de nata, a milanesa, a parmegiana, acebolado, com ovos ou batatas fritas. Mas o principal tempero é a história. 

Hoje considerada um corte nobre, a parte mais macia do boi não era nada na gastronomia porto-alegrense até a década de 1940, quando começou a ser preparada na Santo Antônio.

Tudo começou com a morte precoce de Antonio, em 1946. Inexperiente na cozinha, o filho Caetano viu-se obrigado a aprimorar suas restritas habilidades culinárias para seguir com o negócio. Por indicação de um açougueiro italiano, começou a preparar o corte, então pouco utilizado na culinária gaúcha.

O método de preparo também era pouco ortodoxo: tirou o fundo de algumas latas de óleo e usou como suporte para o filé, preparado na chapa. O experimento resultou na carne tostadinha nas bordas e suculenta por dentro que faz a fama da casa até hoje. 

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Jorge Aita, neto de Antonio Aita, é quem hoje comanda o negócioJefferson Botega / Agencia RBS

Clientela inclui personalidades ilustres

Recomendado pelo boca a boca, nas primeiras décadas o local ainda foi favorecido por sua posição geográfica. A poucos metros do hipódromo (mais tarde transferido para o bairro Cristal) e do primeiro estádio do Grêmio, virou um dos principais pontos onde apostadores e torcedores famintos se esbaldavam depois das corridas e dos jogos nas imediações. 

A relação com o esporte seguiu estreita ao longo dos anos. Atualmente, confrarias de gremistas e colorados se reúnem no local, além de uma turma de praticantes de rali. 

A maior parte do público cativo, no entanto, são famílias – há algumas que, assim como o restaurante, já estão na terceira geração de clientes. Para muitas delas, dividir os fartos filés da Santo Antônio (cada um serve, no mínimo, duas pessoas) foi associado a um programa de fim de semana.

– Quando eu era pequeno, era um dos programas mais esperados do mês, porque não se tinha essa cultura de comer fora. A gente ia aos domingos. Era uma churrascaria muito tradicional – recorda o ator Zé Victor Castiel. 

Ao longo dos anos, substituiu as idas aos finais de semana, quando a casa não raro fica lotada, pelas noites de semana, mais tranquilas. O prato preferido foi adaptado ao seu gosto: em vez de acebolado, o filé é servido com a cebola em separado. É tão de casa que nem precisa pedir. 

Amigo de Jorge, de quem se aproximou na década de 1990, Zé Victor está longe de ser o único frequentador ilustre. Apresentado pelo ator Zé Victor, o diretor Jayme Monjardim fez do local parada obrigatória nas passagens pela Capital. 

Também passaram pelo restaurante Chico Anysio, Tony Ramos, Tarcísio Meira, Glória Menezes e Thiago Lacerda, além de políticos e jogadores de futebol. Entre as personalidades locais, a escritora Cláudia Tajes, o cantor Serginho Moah e o humorista Jair Kobe são apenas alguns dos que, volta e meia, batem ponto por lá. Em uma coluna publicada em Zero Hora, David Coimbra revelou que a primeira carne de churrasco que o filho Bernardo provou foi um filé de “quatro centímetros de altura da Santo Antônio”. 

A generosidade e a suculência da carne preparada no local, aliás, impactaram os integrantes da banda americana Red Hot Chilli Peppers, que foram jantar no local durante uma passagem por Porto Alegre. 

– Um deles levantou e foi olhar se o que a gente servia nas outras mesas era igual ao que estava servindo para eles, porque achava que era um prato especial – recorda Jorge Aita. 

Poucas mudanças à mesa

Outro episódio insólito ocorreu no Dia dos Pais de 2012, quando a Santo Antônio virou sala de cirurgia depois que um idoso se engasgou com um pedaço de carne. Um médico que jantava na casa acudiu o homem, em quem fez uma traqueostomia ali mesmo, com uma das facas usadas para cortar os filés e uma caneta BIC. Cliente da casa, o colunista Paulo Sant’Ana escreveu sobre o caso em Zero Hora:

“O filé da churrascaria Santo Antônio é o mais famoso de Porto Alegre há décadas. Agora, por esse fato, ficou mais famosos ainda. Mas aconselha-se que se coma o filé da churrascaria Santo Antônio com morigeração, em pedaços pequenos, e não como fez o nosso guloso ancião, que queria ingerir um naco de 300 gramas de filé, o que é feio e perigoso”, dizia o texto. 

No restaurante octogenário, o inusitado fica por conta dos acontecimentos. À mesa, quase nada mudou desde a década de 1940. Indiferente aos modismos, o local sempre serviu os pratos a la carte, e pouco modificou as opções desde aquela época: o molho de tomate é receita de Conchetta, e os doces são fornecidos por uma das irmãs de Jorge. 

A tradição que ajudou a fidelizar a clientela também tem sido fundamental para a manutenção do negócio durante a pandemia de coronavírus. O número de telefone, que é o mesmo há décadas, ainda é o canal preferido pelos clientes que pedem os pratos em casa. O faturamento nos últimos meses, segundo o proprietário, caiu cerca de 50% (perdas bem menores do que relataram outros estabelecimentos tradicionais). 

Com autorização para reabrir, o restaurante voltou a receber clientes no começo de setembro. O movimento tímido dos primeiros dias não intimidou Jorge, que sonha em comemorar o centenário da casa:

– A pandemia nos pegou de jeito, mas estamos firmes. Cada um que entra, dá vontade soltar foguete. Quero que chegue aos cem anos... Faltam 15. Estou com 61, então acho que chego – diz