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Tragédia no Canal da Mancha: as horas finais do pior afogamento em massa de imigrantes em travessia
21/12/2021 18:16 em Novidades

Tragédia no Canal da Mancha: as horas finais Tragédia no Canal da Mancha: as horas finais do pior afogamento em massa de imigrantes em travessia

 

 

Nas águas geladas do Canal da Mancha, um grupo de homens, mulheres e crianças boia, enquanto seguram as mãos uns dos outros para se manterem à tona.

Alguns fazem ligações desesperadas para equipes de resgate em telefones celulares mantidos acima das ondas. Mas, à medida que a hipotermia se instala, os dispositivos escorregam de suas mãos antes que consigam enviar sua localização.

O bote no qual esperavam chegar à costa britânica está com o motor quebrado e esvaziando.

Um integrante do grupo consegue enviar uma mensagem de voz para casa.

Ainda estamos no mar entre o Reino Unido e a França. Não temos certeza, de quem está vindo [para nos resgatar].
 — Shakar Ali Pirot

Poucas horas depois, pelo menos 30 pessoas estão mortas, há apenas dois sobreviventes — o pior afogamento em massa de migrantes no Canal da Mancha já registrado.

O que deu errado? A seguir, fazemos uma reconstituição das horas finais do grupo — por meio do testemunho dos sobreviventes, mensagens de telefone celular, dados de transporte e o atendimento de emergência.

Terça-feira, 23 de novembro

Embarque

Ao anoitecer, Hadiya Rzgar Hussein, de 22 anos, sua irmã de sete, Hasti, seu irmão Mubin, de 16, e sua mãe, Kazhal, de 46, reúnem seus pertences no acampamento improvisado em Grande-Synthe, na França, onde haviam permanecido por várias semanas.

A última imagem que se tem conhecimento de Hadiya Rzgar Hussein, sua irmã Hasti, seu irmão Mubin e sua mãe, Kazhal

 

Eles estão cansados ​​e com medo. A polícia francesa desmantelou recentemente o acampamento de Grande-Synthe, despejou seus ocupantes e destruiu a tenda da família — e eles estão desesperados para encontrar os parentes no Reino Unido.

Para fazer isso, eles precisam enfrentar a chamada “rota da morte” por meio do Canal da Mancha, pagando contrabandistas para levá-los até lá em pequenos barcos infláveis ​​baratos.

Embora os íngremes penhascos brancos de Dover sejam visíveis de parte da costa em um dia claro, a travessia é perigosa. É uma das rotas marítimas mais movimentadas do mundo — e aqueles que a cruzam precisam enfrentar as temperaturas congelantes do ar e do mar, além de correntes perigosas

 

O Canal da Mancha é uma das rotas marítimas mais movimentadas do mundo

No seu ponto mais estreito, o canal tem apenas 33 km

Das praias perto de Dunquerque, são cerca de 61 km até a costa inglesa

Hadiya e a família já haviam tentado atravessar três vezes antes. Uma vez foram impedidos pela polícia, depois ficaram sem combustível e na terceira tentativa o motor do barco falhou

Mas os sonhos de Hadiya de se tornar médica levam ela e sua família a seguir adiante.

“Quem não deseja uma vida boa? Quem quer uma vida ruim? Todos os quatro queriam ir. Eu orei a Deus: ‘Por favor, faça com que seus desejos se tornarem realidade’", conta o pai dela, Rizgar Hussien Mohammed, à BBC de sua casa no Curdistão iraquiano.

18:00 horário na França (17:00 GMT)

Quando a noite cai, contrabandistas dizem à família que é hora de partir, e eles se juntam a pelo menos 28 outras pessoas a bordo de um ônibus arranjado para Loon-Plage, um trecho da costa entre Dunquerque e Calais.

A BBC apurou que 20 desses passageiros eram do Curdistão iraquiano.

A viagem para a praia é curta — apenas 10 minutos — e muitos no ônibus começam a entrar em contato com a família para avisá-los que estão prestes a deixar a França.

Os melhores amigos Rezhwan Yasin Hassan, de 19 anos, Zanyar Mustafa Mina, de 20, e Mohammed Qadir Aulla, de 21, todos do Curdistão iraquiano, estão entre os que enviam mensagens para casa de um telefone compartilhado.

Foto mostrando Rezhwan Yasin Hassan, Mohamed Qader e Zenyar Mustafa Mina

 

Meu querido pai, Eu vou para a fronteira. Me deseje boa sorte, depois de cinco ou 10 horas eu estarei no Reino Unido e aí ligarei para você.

 

19:45

Pouco tempo depois, outro grupo de amigos e conhecidos, que também estava no ônibus, entrou em contato com suas famílias no Iraque de vários telefones compartilhados.

Os mais novos são Pshtiwan Rasul Farka e Twana Mamand Mohammed, ambos de 18 anos, e Mohammed Hussein Mohammed, de 19. Viajando com eles também estão “Hybar” Bryar Hamad Abdulrahman, de 23, Afrasia Ahmed Mohammed, de 27, “Harem” Serkaut Perot Muhammad, de 28, Shakar Ali Pirot, de 30, e Hassan Mohammed Ali, de 37.

Entre eles, está um iraniano, Sirwan Alipour, de 23 anos

Foto mostrando Pshtiwan Rasul Farka, Twana Mamand Mohammed, Mohammed Hussein Mohammed, “Hybar” Bryar Hamad Abdulrahman, Afrasia Ahmed Mohammed e “Harem” Serkaut Perot Muhammad, Shakar Ali Pirot e Hassan Mohammed Ali

 

Estamos começando a jornada esta noite, ore por nós

 

Bryar liga para sua mãe e diz que entrará em contato com ela “quando estiver do outro lado do canal”.

20:00

Hadiya, a jovem de 22 anos que espera se formar em medicina, envia uma mensagem para o pai — o homem que tornou esta viagem possível. Ele vendeu a casa da família e pediu dinheiro emprestado para levantar os US$ 42 mil necessários

Pai, daqui a cinco minutos vamos partir. Todo mundo está entrando no barco agora. Pai, estamos entrando.

 

A curda iraquiana “Baran” Maryam Nuri Mohamed Amin, de 24 anos, que tenta falar com o noivo no Reino Unido, e sua amiga, Mhabad Ahmad Ali, de 32, também estão entrando no barco.

Maryam Nuri Mohamed Amin e sua amiga Mhabad Ahmad Ali

 

22:00

Para dar a partida, as condições precisam ser adequadas — sem patrulhas policiais, com céu limpo e mar calmo. Por volta das 22h, horário da França, os traficantes dão aos migrantes o sinal verde final para atravessar.

Alguns socorristas chamam estas condições de “clima dos migrantes” porque é quando muitos decidem fazer a travessia. Mas alertam que não é o vento o maior desafio. É a temperatura congelante do ar e do mar.do pior afogamento em massa de imigrantes em travessia

Ainda estamos no mar entre o Reino Unido e a França. Não temos certeza, de quem está vindo [para nos resgatar].
 — Shakar Ali Pirot

Poucas horas depois, pelo menos 30 pessoas estão mortas, há apenas dois sobreviventes — o pior afogamento em massa de migrantes no Canal da Mancha já registrado.

O que deu errado? A seguir, fazemos uma reconstituição das horas finais do grupo — por meio do testemunho dos sobreviventes, mensagens de telefone celular, dados de transporte e o atendimento de emergência.

Terça-feira, 23 de novembro

Embarque

Ao anoitecer, Hadiya Rzgar Hussein, de 22 anos, sua irmã de sete, Hasti, seu irmão Mubin, de 16, e sua mãe, Kazhal, de 46, reúnem seus pertences no acampamento improvisado em Grande-Synthe, na França, onde haviam permanecido por várias semanas.

A última imagem que se tem conhecimento de Hadiya Rzgar Hussein, sua irmã Hasti, seu irmão Mubin e sua mãe, Kazhal

 

Eles estão cansados ​​e com medo. A polícia francesa desmantelou recentemente o acampamento de Grande-Synthe, despejou seus ocupantes e destruiu a tenda da família — e eles estão desesperados para encontrar os parentes no Reino Unido.

Para fazer isso, eles precisam enfrentar a chamada “rota da morte” por meio do Canal da Mancha, pagando contrabandistas para levá-los até lá em pequenos barcos infláveis ​​baratos.

Embora os íngremes penhascos brancos de Dover sejam visíveis de parte da costa em um dia claro, a travessia é perigosa. É uma das rotas marítimas mais movimentadas do mundo — e aqueles que a cruzam precisam enfrentar as temperaturas congelantes do ar e do mar, além de correntes perigosas

 

O Canal da Mancha é uma das rotas marítimas mais movimentadas do mundo

No seu ponto mais estreito, o canal tem apenas 33 km

Das praias perto de Dunquerque, são cerca de 61 km até a costa inglesa

Hadiya e a família já haviam tentado atravessar três vezes antes. Uma vez foram impedidos pela polícia, depois ficaram sem combustível e na terceira tentativa o motor do barco falhou

Mas os sonhos de Hadiya de se tornar médica levam ela e sua família a seguir adiante.

“Quem não deseja uma vida boa? Quem quer uma vida ruim? Todos os quatro queriam ir. Eu orei a Deus: ‘Por favor, faça com que seus desejos se tornarem realidade’", conta o pai dela, Rizgar Hussien Mohammed, à BBC de sua casa no Curdistão iraquiano.

18:00 horário na França (17:00 GMT)

Quando a noite cai, contrabandistas dizem à família que é hora de partir, e eles se juntam a pelo menos 28 outras pessoas a bordo de um ônibus arranjado para Loon-Plage, um trecho da costa entre Dunquerque e Calais.

A BBC apurou que 20 desses passageiros eram do Curdistão iraquiano.

A viagem para a praia é curta — apenas 10 minutos — e muitos no ônibus começam a entrar em contato com a família para avisá-los que estão prestes a deixar a França.

Os melhores amigos Rezhwan Yasin Hassan, de 19 anos, Zanyar Mustafa Mina, de 20, e Mohammed Qadir Aulla, de 21, todos do Curdistão iraquiano, estão entre os que enviam mensagens para casa de um telefone compartilhado.

Foto mostrando Rezhwan Yasin Hassan, Mohamed Qader e Zenyar Mustafa Mina

 

Meu querido pai, Eu vou para a fronteira. Me deseje boa sorte, depois de cinco ou 10 horas eu estarei no Reino Unido e aí ligarei para você.

 

19:45

Pouco tempo depois, outro grupo de amigos e conhecidos, que também estava no ônibus, entrou em contato com suas famílias no Iraque de vários telefones compartilhados.

Os mais novos são Pshtiwan Rasul Farka e Twana Mamand Mohammed, ambos de 18 anos, e Mohammed Hussein Mohammed, de 19. Viajando com eles também estão “Hybar” Bryar Hamad Abdulrahman, de 23, Afrasia Ahmed Mohammed, de 27, “Harem” Serkaut Perot Muhammad, de 28, Shakar Ali Pirot, de 30, e Hassan Mohammed Ali, de 37.

Entre eles, está um iraniano, Sirwan Alipour, de 23 anos

Foto mostrando Pshtiwan Rasul Farka, Twana Mamand Mohammed, Mohammed Hussein Mohammed, “Hybar” Bryar Hamad Abdulrahman, Afrasia Ahmed Mohammed e “Harem” Serkaut Perot Muhammad, Shakar Ali Pirot e Hassan Mohammed Ali

 

Estamos começando a jornada esta noite, ore por nós

 

Bryar liga para sua mãe e diz que entrará em contato com ela “quando estiver do outro lado do canal”.

20:00

Hadiya, a jovem de 22 anos que espera se formar em medicina, envia uma mensagem para o pai — o homem que tornou esta viagem possível. Ele vendeu a casa da família e pediu dinheiro emprestado para levantar os US$ 42 mil necessários

Pai, daqui a cinco minutos vamos partir. Todo mundo está entrando no barco agora. Pai, estamos entrando.

 

A curda iraquiana “Baran” Maryam Nuri Mohamed Amin, de 24 anos, que tenta falar com o noivo no Reino Unido, e sua amiga, Mhabad Ahmad Ali, de 32, também estão entrando no barco.

Maryam Nuri Mohamed Amin e sua amiga Mhabad Ahmad Ali

 

22:00

Para dar a partida, as condições precisam ser adequadas — sem patrulhas policiais, com céu limpo e mar calmo. Por volta das 22h, horário da França, os traficantes dão aos migrantes o sinal verde final para atravessar.

Alguns socorristas chamam estas condições de “clima dos migrantes” porque é quando muitos decidem fazer a travessia. Mas alertam que não é o vento o maior desafio. É a temperatura congelante do ar e do mar.

Vista do Canal da Mancha a partir da praia de onde é feito o embarque na costa norte da França

 

Vários botes são desenterrados de seus esconderijos ao longo das dunas, onde eram mantidos fora da vista da polícia.

Pelo menos seis barcos partem naquela noite.

Hadiya e a família, junto a todos os outros passageiros do ônibus, recebem um bote inflável de borracha de 10 m de comprimento com um motor acoplado na parte traseira. Um barco como este de segunda mão pode ser comprado por £ 400. Não tem uma base sólida e não foi projetado para transportar com segurança mais de 20 pessoas.

Mas este pequeno bote deixa a França com uma carga humana de pelo menos 32 adultos e crianças a bordo.

22:50

O barco avança em mar aberto, e Pshtiwan envia sua última mensagem de voz para casa — o motor do bote pode ser ouvido ao fundo.

Como você está, mano? E seu irmão e todos comigo, estamos sãos e salvos no mar. Esperamos chegar com segurança e em breve, se Deus quiser.
 — Pshtiwan Rasul Farka

Com sobrecarga, o barco avança lentamente — em parte por causa do excesso de peso —, enquanto se dirige a noroeste noite adentro. Os passageiros se agarram uns aos outros e às laterais da embarcação, conforme as ondas aumentam de tamanho.

Outro grupo de migrantes que faz a mesma travessia e partiu apenas uma hora depois descreve “grandes ondas e mau tempo”. Eles ficam encharcados no frio congelante. Alguns também ficam enjoados e acabam abortando a viagem e voltando para a França.

Quarta-feira, 24 de novembro, 01:30

O bote é atingido pelas ondas

Hadiya e seu grupo começam a enfrentar dificuldades.

Quando o bote chega no meio do Canal da Mancha, o lado direito começa a esvaziar — e começa a entrar água na embarcação.

“Algumas pessoas bombeavam ar nele, e outras tiravam água do bote”, diz o curdo iraquiano Mohammed Shaikh Ahmad, de 21 anos, um dos dois únicos sobreviventes, à televisão curda.

Baran manda mensagens para seu noivo no Reino Unido, Karzan, pelo Snapchat. Ela descreve como o barco está perdendo ar e entrando na água, mas brinca e tenta tranquilizá-lo. Os que dirigem o barco estão se esforçando para mantê-lo à tona, diz ela, que afirma ter certeza de que as autoridades os resgatarão em breve.

Os passageiros começam a debater sobre fazer sinal para um navio que avistaram à distância, mas o consenso é de que deveriam seguir para o Reino Unido.

02:30

Mas o pior ainda está por vir. Pouco tempo depois, o motor do barco para, deixando o bote e seus passageiros à mercê das correntes do Canal da Mancha.

O barco começa a ser engolido pelas ondas.

“Em 30 minutos, o barco inteiro afundou”, conta o outro sobrevivente, Mohammed Isa Omar, de 28 anos, da Somália, à BBC.

À medida que mergulham na água gelada, os integrantes do grupo se agarram uns aos outros e ao que sobrou do bote vazio, para evitar que se afastem.

Eles viajaram pelo menos 30 km da praia de onde embarcaram. Uma análise da BBC de dados de navegação sugere que eles estão agora perto da linha marítima que marca o início das águas territoriais britânicas.

Enquanto eles se dão as mãos, aqueles que podem, incluindo Mubin, de 16 anos — irmão mais novo de Hadiya — ligam para as autoridades francesas e inglesas para pedir ajuda.

No meio de uma conversa com seu noivo, Baran sai do Snapchat.

03:42

Pelo menos dois membros do grupo entram em contato com as autoridades britânicas por telefone, que perguntam a localização do grupo e dizem para manterem suas lanternas do celular ligadas. Mas os telefones dos passageiros caem na água antes que eles sejam capazes de enviar os detalhes, dizem os sobreviventes.

Por volta deste momento, Shakar Ali Pirot envia uma mensagem de voz para a família.

Ainda estamos no mar entre o Reino Unido e a França. Não temos certeza, de quem está vindo [para nos resgatar]. Se você não tiver notícias minhas, estamos no Reino Unido, vou jogar este telefone fora. Se ficarmos em águas francesas, vou te responder.
 — Shakar Ali Pirot

Ele diz que se for salvo, jogará seu telefone no mar — algo que muitos migrantes contaram à BBC que são orientados a fazer por contrabandistas para proteger a identidade dos traficantes de pessoas. Alguns também dizem que fazem isso para esconder detalhes que podem impedir que seus pedidos de asilo sejam aceitos uma vez em solo britânico.

Acredita-se que a mensagem de voz de Shakar seja a última comunicação proveniente do bote que se tem conhecimento.

De acordo com a troca de WhatsApp entre Shakar e sua família, vista pela BBC, o telefone dele fica online até 04h14, horário da França, mas ele não envia mais mensagens.

O barco agora está completamente submerso, e todos os passageiros estão na água. A hipotermia se instala.

“Eu vi pessoas morrendo na minha frente”, diz o sobrevivente Mohammed Isa Omar.

Ele é um grande nadador e tenta chegar a um barco próximo.

09:00

Um segundo bote de migrantes — que partiu duas horas depois do que transportava Hadiya e sua família — chega no meio do Canal da Mancha. À luz do amanhecer, eles veem corpos na água. Os passageiros deste barco pedem ajuda às autoridades francesas.

“Vi alguns corpos sem colete salva-vidas e outros com (colete), mas do pior tipo, aqueles muito baratos”, diz um homem anônimo em mensagem de áudio ouvida pela BBC. “Como eu estava em choque, não vi seus rostos, mas parecia que já deviam estar mortos há algum tempo. Talvez duas horas depois do barco deles ter virado. ”
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